quinta-feira, dezembro 11, 2008

1824 - crónica de um sorriso anunciado

Hoje, um de novembro de dois mil e oito, sábado às treze e dez, acabei a primeira versão do livro,[até aqui, percebi] o que significa que falta escrever tudo [como?] não mencionando o trabalho de corte e costura [quantos/as leitores/as saberão hoje o que foi o corte e costura?] e o frete de professor de Português a corrigir um teste que não lhe agrada até ficar em paz com ele [ficar em paz com quem? com ele professor ou com ele teste?]. Depois batem no computador [coitadinho do computador], emendo, volta ao computador, torno a emendar e andamos meses nisto. Ao achar-me contente com o material emendo mais, ao achar-me muito contente emendo ainda, ao achar-me feliz desconfio, ao achar que consegui aquilo que pretendia segue para a máquina e publica-se [uff]. A partir desse momento deixa de pertencer-me e começo a esquecê-lo. Ao esquecê-lo de todo principia a longa espera do livro seguinte: virá, não virá? Até agora tem vindo. O medo que não venha, o pavor de haver secado. Rapei o fundo à panela, acabou-se. E a pergunta angustiada: no caso de se ter acabado o que será de mim? Como viver sem estas vozes, esta necessidade estranha que desde os sete anos ou oito anos é a minha razão e o meu sentido [e a medicina, pá?]? Nunca pensei publicar, aconteceu por acaso, o que me interessava era escrever. Foi-me sempre claro que enchia o papel de mediocridades e patetices [António, concordo. Estamos de acordo, camarada] mas tinha uma fé cega no meu génio. Anos e anos a insistir, a compreender que
(– Ainda não encontrei, ainda não encontrei)
todos eram melhores que eu
[continuamos a concordar] e no entanto a certeza que seria melhor que eles um dia. De onde me vinha essa certeza? Sentia a força, ignorava como manejá--la. Levei séculos. Agora que consegui [conseguiste?] a questão é
– Não chega, tens obrigação de ir mais longe
de modo que me sinto de novo no princípio. Tens obrigação de ir mais longe. E nem que deixe a pele nessa luta hei-de ir. Nem que deixe a pele é um eufemismo: deixo-a mesmo. E sem pele continuo
[tenho para ali um disco do Senhor Peles, fala do Benfica e assim]. Se perder os pés continuo com os cotos, se não houver cotos continuo com as unhas [alto aí, foste às aulas de Anatomia, certo? repara as unhas estão nos pés (e nas mãos) sem pés não há unhas], se não houver unhas continuo com os dentes. Não pretendo ensinar nada, mostrar nada, ajudar nada[ainda bem]: apenas me preocupa atingir o coração do coração e iluminar tudo. Até cegar de tanto ver. E, uma vez cego, paro e deito-me. Acabou-se a viagem[há vida para além da cegueira ou pelo menos um ensaio sobre ela. A cegueira.]. E a do leitor comigo: não precisamos de mais nada.
Um de novembro de dois mil e oito, a minha cabeça cheia de coisas, o que fiz da vida, o que vou fazer com ela
[com ela com quem? com a cabeça ou com a vida?], um sol gelado na rua, que me não alegra. A água da piscina de um hotel, trémula, azul
(devem ter pintado a piscina de azul)
a reflectir nuvens. Uma chaminé deitando fumo, há quanto tempo não via uma chaminé deitando fumo? Ou não olhava? Arbustos rígidos de frio. Por uma associação que me escapa vem-me à ideia
[bolas António, escrevi ontem: vem-me à memória...] Gertrude Stein a morrer.
– Qual é a resposta?
dizia ela, e como os outros calados insistiu
– Então qual é a pergunta?
Acabei a primeira versão do livro
(a chaminé não pára)
e eu com estas duas frases a perseguirem-me. De certo modo acho que, postas desta forma uma após outra, resumem o que é escrever. A arte é apenas isto, qual é a resposta, qual é a pergunta. E a arte é apenas isto porque somos apenas isto. Pelos vidros reparo num homem preto a subir a ladeira com o filho. Quase vestidos de igual, ou seja pobres
[pretos e pobres, portanto]. Apenas isto. Depois são duas mulheres, também pretas, que descem, a do lado de cá grávida até aos olhos, o que traz na barriga ocupa-a toda. Está bem, acabei a primeira versão. E vai daí o que lhes importa a eles? Ou à piscina? Ou à chaminé? Que presunção imaginar o que faço importante [presunção e água benta...]: o facto de dar cabo de mim a aperfeiçoar palavras, ou julgando que as aperfeiçoo, não vale um caracol [pois não]. Vou amontoando estas linhas com uma esferográfica trazida [furtada, portanto] do hotel em Nova Iorque. Kimpton, é o que está impresso, Kimpton every hotel tells a story. Este, o da piscina, não me tela story nenhuma [pois, pois eu, também, costumo brincar com umas frases meio inglês e tal, bah] com uma mulher feia [não há mulheres feias, há homens que se armam em esquisitos] a sair de uma porta de vidro com um toldo por cima a anunciar Recepção. Auto-colantes no vidro. A mulher feia empurra o cabelo para trás, some-se-me da cabeça e um jornalista da West Virginia ocupa o seu lugar, chama-se Jeff, gostei dele [ah, ah, gostaste?]. Há uma canção sobre a West Virginia, de John Denver salvo erro. Tem piada, a mulher feia voltou e o Jeff sumiu-se. Deu-me uma primeira edição de Céline, no fim da entrevista contou da mulher, das crianças. Mora numa cidade de menos de mil habitantes e sabe tudo sobre mim. Fiquei parvo. Levo os dias a ficar parvo, aliás [quem diz a verdade não merece castigo]. O que te apetece agora, António? Apetece-me ser um homem preto a subir a ladeira com o filho. Apetece-me que me sorriam mas não há aqui ninguém senão eu. Portanto sorrio-me a mim mesmo [ao melhor estilo Miguel Sousa Tavares, parece-me a mim (mesmo)]
A crónica do Senhor Doutor António Lobo Antunes está em itálico, os meus comentários, na segunda pessoa do singular, alardeando uma falsa intimidade, estão a azul... uma palermice desconstrutiva.

1 Comments:

Blogger Unknown said...

Agora, livro meu, vai, vai para onde o acaso te leve .

sexta-feira, dezembro 12, 2008 6:16:00 da tarde  

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